Transfusão Sanguínea em Cães e Gatos
Escrito por: Laura Ghussn e Adriano Carregaro
Uma das principais complicações transoperatórias é a hipovolemia por hemorragia, decorrente de traumas, neoplasias, sepse, distúrbios hemolíticos ou cirurgias de grande porte. Algumas intervenções podem ser realizadas para diminuir o impacto da hipovolemia no paciente, como a administração de cristaloides ou coloides, provas de carga, fármacos vasoativos, hemodiluição, transfusão de sangue total ou de hemocomponentes.
A partir do sangue total é possível realizar o fracionamento em hemocomponentes, como concentrado de hemácias, de plaquetas e plasma, que são indicados, respectivamente, para pacientes anêmicos, trombocitopênicos e com deficiência de fatores de coagulação. A transfusão de hemocomponentes é considerada o padrão-ouro, pois é uma terapia mais específica, que otimiza o tratamento e reduz os riscos transfusionais que há no uso de sangue total. Na medicina veterinária, porém, a produção e a disponibilidade de hemocomponentes ainda é relativamente restrita, de modo que a transfusão de sangue total ainda é prevalente, mesmo às vezes não sendo a melhor conduta devido a possíveis reações transfusionais agudas ou tardias.
A transfusão do sangue total é indicada em hemorragias agudas e acentuadas, em que há risco de choque hemorrágico. O objetivo da transfusão sanguínea é a reposição volêmica imediata para manutenção da perfusão tecidual e da pressão coloidosmotica, quando as soluções cristaloides não forem indicadas, pois podem gerar hemodiluição.
Nesses casos, a hipovolemia reduz a pressão arterial e, consequentemente, implica em menor perfusão tecidual de oxigênio. A oferta de oxigênio aos tecidos (DO2 – oxygen delivery) depende diretamente da concentração de hemoglobina no sangue, que carreia o oxigênio para ser liberado dos vasos sanguíneos ao espaço intracelular. Dessa forma, quando o animal está com baixa concentração de hemoglobina (Hb < 6 g/dL), como em hemorragias agudas, a perfusão estará prejudicada, provocando hipóxia tecidual.
Um sinal evidente desse quadro é a taquicardia compensatória, que aumenta gradativamente caso não haja reposição volêmica, com evolução e inclusive agravamento do quadro. Além disso, o débito urinário é reduzido, as mucosas ficam hipocoradas e, em um grau mais avançado, cianóticas, pela vasoconstrição periférica e hipóxia tecidual. Dessa forma, animais que apresentem maior risco de alterações hemodinâmicas, como em politraumas e cirurgias em órgãos muito vascularizados, devem ser monitorados preferencialmente com pressão arterial invasiva, que fornece valores contínuos e possibilita rápida intervenção.
Como calcular o volume a ser transfundido?
Previamente à realização de procedimentos cirúrgicos, portanto, é essencial que os valores de hematócrito e hemoglobina do paciente sejam analisados. Se o hematócrito estiver abaixo de 20% em cães e abaixo de 15% em gatos e a hemoglobina abaixo de 6 g/dL, é recomendada transfusão sanguínea. O volume de sangue a ser transfundido no paciente é calculado pela fórmula:
Caso o paciente seja submetido a um procedimento de alta complexidade, é necessário considerar também a perda sanguínea que haverá no ato cirúrgico. Para isso, é recomendado utilizar um valor de “hematócrito desejado” mais elevado para o cálculo, pois parte do sangue transfundido será perdida. O ideal é que o valor de hematócrito seja avaliado novamente durante a cirurgia, para que haja uma maior precisão no volume de transfusão estimado.
Como selecionar o doador?
Para a realização da transfusão sanguínea, é necessário que seja selecionado um animal que se enquadre no perfil de doador de sangue para que o procedimento não gere prejuízo à sua saúde e à do animal receptor. Essas características podem ser vistas na figura abaixo:
Teste de compatibilidade sanguínea
Após a seleção do doador, é imprescindível a realização de teste de compatibilidade sanguínea entre o doador e o receptor, para evitar que haja hemolise aguda devido à reação entre os antígenos eritrocitários do doador e os anticorpos circulantes do receptor.
Em cães, essa reação transfusional é causada principalmente pela presença dos antígenos DEA 1.1 e 1.2 (dog erythrocyte antigen) e é menos comum em cães que nunca tiveram contato com sangue de outro animal, pois a incidência de anticorpos naturais contra estes antígenos é baixa. Assim, animais que receberam transfusão sanguínea anteriormente e fêmeas primíparas e multíparas têm maior risco de desenvolver a hemólise aguda após a transfusão sanguínea.
Os gatos, por outro lado, possuem maior incidência de anticorpos naturais, de acordo com os tipos sanguíneos, que podem ser A, B e AB. Os gatos com sangue tipo A possuem baixa concentração de anticorpos anti-B, e os gatos com sangue tipo B apresentam alta titulação de anticorpos anti-A.
Qual a taxa de administração?
A taxa da transfusão deve ser lenta (0,25 a 5 mL/kg/h) nos 30 minutos iniciais, devendo ser mantida assim em animais cardiopatas, nefropatas e hipertensos. Para animais sem estas alterações, a taxa poderá ser elevada até 20 mL/kg/h, se não houver hipertensão. A monitoração da pressão arterial é imprescindível para o controle da velocidade da transfusão.
É necessário que o animal seja cuidadosamente monitorado durante a transfusão, para que haja uma rápida intervenção se apresentar alguma alteração. Também é necessário o acompanhamento do animal por alguns dias após a transfusão, pois algumas dessas reações podem se manifestar tardiamente, em até 21 dias após a realização do procedimento.
Reações transfusionais
Em relação às possíveis reações transfusionais no receptor, além da hemólise aguda gerada pela reação antígeno-anticorpo, pode haver hipersensibilidade aguda, coagulopatias, imunossupressão, sensibilidade a plaquetas e a leucócitos, isoeritrólise neonatal, embolia, hiperamonemia, acidose e sepse.
É necessário que o animal seja cautelosamente monitorado durante a transfusão, para que haja uma rápida intervenção se apresentar alguma alteração. Também é necessário o acompanhamento do animal por alguns dias após a transfusão, pois algumas dessas reações podem se manifestar tardiamente, em até 21 dias após a realização do procedimento.
A hipersensibilidade aguda é a reação mais comum, que ocorre por meio da liberação de diversos mediadores inflamatórios, como histamina, serotonina, bradicinina, prostaglandinas, citocinas, fatores de agregação plaquetária, óxido nítrico e anafilotoxinas. Essa reação pode se manifestar nos momentos iniciais da transfusão, ou em até 24h. Em cães, a alteração mais comum é a urticária, que pode estar acompanhada de edema de pálpebra, glote e vias respiratórias, febre, êmese, dispneia, broncoconstrição e choque. Nos gatos, manifestações respiratórias são mais frequentes.
A primeira conduta nos casos de reação transfusional deve ser a interrupção do procedimento, caso ainda esteja em andamento. Sinais clínicos mais brandos, como prurido e eritema, podem ser tratados clinicamente com corticoides e anti-histamínicos e a transfusão poderá ser retomada com cautela se houver melhora destes sinais. É indicado o uso de dexametasona (0,5-1 mg/kg IV ou SC) ou de difenidramina (2 mg/kg IM).
Sinais clínicos mais graves, como dispneia, broncoconstrição e choque anafilático, devem ser tratados com maiores doses de dexametasona (4 – 6 mg/kg IV) e epinefrina (0,01 mg/kg IV), com suspensão definitiva da transfusão.
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Pra ler depois:
– Botteon KD, Gomes SGR. Transfusão sanguínea em felinos. In: Jericó MM et al. Tratado de Medicina Interna de Cães e Gatos. 1ª. ed. Roca, 2015, 5787-5808.
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– Kisielewicz C, Self IA. Canine and feline blood transfusions: controversies and recent advances in administration practices. Vet Anaesth Analg, 41: 233-242, 2014.
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