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Analgesia por infusão contínua em cães – Lidocaína, Cetamina e Associações

Escrito por: Laura Ghussn, Cristiano Melo e Adriano Carregaro

Neste terceiro post sobre analgesia por infusão contínua em cães, falaremos um pouco sobre a lidocaína, cetamina e suas associações a outros fármacos, como os opioides e agonistas alfa-2 adrenérgicos. Se você ainda não leu o post sobre infusão contínua de opioides, clique aqui; para o de agonistas alfa-2 adrenérgicos, clique aqui.

Antes de continuarmos, vale relembrar que o principal motivo de utilizarmos combinações de diferentes fármacos está em promover analgesia multimodal por diferentes mecanismos de ação. Além disso, quando um fármaco é associado a outro, pode ocorrer sinergismo, favorecendo a redução das doses e do requerimento de anestésicos gerais o que, consequentemente, diminui a chance de efeitos adversos.

LIDOCAÍNA

A lidocaína é um anestésico local clássico, capaz de promover anestesia e analgesia em bloqueios locorregionais. Porém, ela também pode ser empregada como analgésico sistêmico, administrada como infusão contínua. O mecanismo exato pelo qual a lidocaína exerce o efeito analgésico, se utilizada sistemicamente, permanece incerto. Quando utilizada em infusão contínua, ela promove, em média, um efeito poupador de anestésico geral ao redor de 30%.

Dose bolus:  1,0 – 2,0 mg/kg IV em bolus lento, de 1 a 2 minutos.

Infusão contínua: Taxa de infusão de 25 – 100 µg/kg/min, sendo recomendado utilizar doses mais elevadas durante o procedimento cirúrgico, com redução da taxa ao final do procedimento e pós-operatório. 

Possíveis efeitos adversos: Desorientação, ansiedade, vocalização, sedação leve, náusea, êmese, convulsão, defecação, espasmos musculares, e, raramente, depressão respiratória e hipotensão.

Observação: Utilizar com cautela em períodos prolongados de infusão e/ou em administração concomitante em bloqueios locorregionais, para evitar efeitos tóxicos. Um estudo mostra ser prudente evitar infusões acima de 12 horas para doses superiores a 50 µg/kg/min.

CETAMINA

A cetamina é muito utilizada como anestésico dissociativo, mas também pode ser empregada na analgesia perioperatória, pois atua principalmente no bloqueio dos receptores NMDA e AMPA, responsáveis pela modulação da dor. Destaca-se que as doses analgésicas administradas em bolus ou infusão contínua são inferiores às necessárias para promover anestesia dissociativa. A infusão contínua de cetamina gera efeito poupador de anestésicos gerais em aproximadamente 25%, com mínimas alterações cardiovasculares.

Quando a manutenção anestésica é realizada com propofol, a infusão contínua de cetamina gera maior estabilidade hemodinâmica, porém, há considerável depressão respiratória, sendo necessária a intervenção de ventilação mecânica. 

Dose bolus: 0,5 – 1,0 mg/kg IV.

Infusão contínua: Durante procedimentos cirúrgicos, podem ser utilizadas taxas de infusão elevadas, que devem ser reduzidas ao longo do procedimento, sendo recomendado 10 – 20 µg/kg/min.

Possíveis efeitos adversos: Taquicardia, e euforia na recuperação anestésica.

Evitar: Em procedimentos cirúrgicos oculares, pois promove aumento da pressão intraocular.


ASSOCIAÇÕES

Embora descritos aqui, o uso isolado de lidocaína ou cetamina para a analgesia perioperatória em cães pode não ser o ideal, sendo indicada a utilização de associações em prol de um controle analgésico mais adequado. Então, vamos destacar aqui as principais associações utilizadas como infusão contínua em cães.

Morfina + Lidocaína + Cetamina – MLK

Como dito anteriormente, a infusão contínua de associações objetiva atingir três pontos: melhor controle de dor, efeito poupador de anestésicos gerais e diminuição dos efeitos adversos. Quando a morfina é associada à cetamina e/ou lidocaína, há considerável supressão do estímulo doloroso, especialmente nas fases de modulação e percepção. Essa associação, também conhecida como “MLK”, tem efeito poupador de anestésicos gerais em torno de 45%.

Dose bolus: 0,25 mg/kg de morfina + 1,0 – 2,0 mg/kg de lidocaína + 0,5 – 1,5 mg/kg de cetamina, em bolus IV, entre 1 a 2 minutos, podendo ser associados na mesma seringa. Se a indução for feita com cetamina, o bolus deste medicamento é desnecessário.

Infusão contínua: Administração de 3,3 µg/kg/min de morfina + 50 µg/kg/min de lidocaína + 10 µg/kg/min de cetamina.

Possíveis efeitos adversos: Discreta bradicardia e hipotensão, depressão respiratória, euforia na recuperação anestésica, desorientação, ansiedade, vocalização, sedação leve, convulsão, êmese, defecação e espasmos musculares. Devido ao sinergismo entre os fármacos e a redução das doses em relação aos fármacos isolados, tais efeitos são reduzidos.

Evitar: em pacientes com mastocitoma, devido à possibilidade de degranulação e liberação de histamina pelo uso da morfina.

Fentanil + Lidocaína + Cetamina – FLK

Outro opioide que pode ser utilizado em associação à lidocaína e cetamina é o fentanil. Essa troca da morfina (MLK) pelo fentanil (FLK) potencializa bastante os anestésicos inalatórios, sendo muito mais marcante que os efeitos da associação anterior. Porém, é importante lembrar que o FLK, por si só, não permite a realização de procedimentos cirúrgicos, sendo necessário anestesia geral ou locorregional para cirurgias.

Dose bolus: 2,0 – 10 µg/kg de fentanil + 1,2 – 2,0 mg/kg de lidocaína + 0,5 – 1,5 mg/kg de cetamina, em bolus lento de 1 a 2 minutos, podendo ser associados na mesma seringa. Se a indução for feita com cetamina e/ou fentanil, o bolus é desnecessário.

Infusão contínua: 0,05 – 0,1 µg/kg/min de fentanil + 50 – 100 µg/kg/min de lidocaína + 10 – 20 µg/kg/min de cetamina.

Possíveis efeitos adversos: Depressão respiratória, bradicardia e as demais possibilidades descritas acima quanto à lidocaína e cetamina.

Evitar: Controle de dor pós-operatória, devido à acentuada depressão respiratória gerada pelo fentanil, sendo necessário constante monitoração e possível ventilação mecânica.

Lidocaína + Dexmedetomidina + Cetamina – LDK

A dexmedetomidina, já abordada em outro post, é o agonista alfa-2 adrenérgico mais utilizado em procedimentos anestésicos em cães, na atualidade. Altamente seletiva, a dexmedetomidina promove sedação, analgesia e miorrelaxamento pela estimulação de receptores adrenérgicos alfa-2, com redução da liberação de norepinefrina. Quando a dexmedetomidina é associada à lidocaína e/ou cetamina, observa-se ótima analgesia pós-operatória em relação ao uso isolado desses fármacos, além de um efeito poupador de aproximadamente 50%.

Dose bolus: Administração intravenosa de 1,0 – 2,0 mg/kg de lidocaína + 1,0 mg/kg de cetamina + 1,0 µg/kg de dexmedetomidina. Se a indução for feita com cetamina e/ou dexmedetomidina, o bolus é desnecessário.

Infusão contínua:  25 – 100 µg/kg/min de lidocaína + 10 – 40 µg/kg/min de cetamina + 1,0 – 3,0 µg/kg/h de dexmedetomidina.

Possíveis efeitos adversos: Diminuição do débito cardíaco, bradicardia, hipertensão, êmese, hiperglicemia e os demais efeitos adversos citados para a lidocaína e cetamina neste post.

Evitar: em pacientes cardiopatas, diabéticos, hepatopatas e nefropatas.


Doses de lidocaína, cetamina e principais associações para analgesia por infusão contínua em cães

Fármacos e associaçõesDose bolusDose CRILimitações
Lidocaína1 – 2 mg/kg em bolus de 1 a 2 minutos25 – 100 µg/kg/minUtilizar com cautela em períodos prolongados de infusão e/ou em administração concomitante em bloqueios locorregionais
Cetamina0,5 – 1 mg/kg10 – 20 µg/kg/minCirurgias oculares
MLK
morfina, lidocaína e cetamina
0,25 mg/kg de morfina
1 – 2 mg/kg de lidocaína
0,5 – 1,5 mg/kg de cetamina
em bolus de 1 a 2 minutos
3,3 µg/kg/min de morfina
50 µg/kg/min de lidocaína 
10 µg/kg/min de cetamina
Pacientes com mastocitoma
FLK
fentanil, lidocaína e cetamina
2 – 10 µg/kg de fentanil
1,2 – 2 mg/kg de lidocaína
0,5 – 1,5 mg/kg de cetamina
em bolus lento de 1 a 2 minutos
0,05 – 0,1 µg/kg/min de fentanil
50 – 100 µg/kg/min de lidocaína
10-20 µg/kg/min de cetamina
Controle de dor pós-operatória, devido à depressão respiratória
LDK
lidocaína, dexmedetomidina e cetamina
1 – 2 mg/kg de lidocaína
1 mg/kg de cetamina
1 µg/kg de dexmedetomidina 
25 – 100 µg/kg/min de lidocaína
10 – 40 µg/kg/min de cetamina
0,01 – 0,05 µg/kg/min de dexmedetomidina
Cardiopatas, diabéticos, hepatopatas e nefropatas

REVERSORES

Alguns efeitos adversos são possíveis após o uso de infusões contínuas, tais como disforia ou sedação excessiva. Caso ocorram, reversões parciais ou totais devem ser consideradas. 

No caso de infusões contendo opioides, a naloxona na dose de 10 a 40 μg/kg IV pode ser uma opção. Em protocolos envolvendo a associação de dexmedetomidina, a ioimbina (50 – 200 µg/kg) ou o atipamezole (100 – 300 µg/kg) podem ser usados como reversores, levando em conta os possíveis efeitos adversos do seu uso, já destacados no outro post.

Quanto aos demais fármacos abordados neste post, infelizmente não há reversores disponíveis e, em casos de excessos, apenas o tratamento suporte conta como opção.


Concluindo…

Após essa trinca de posts, sobre opioides, agonistas alfa-2 adrenérgicos, lidocaína, cetamina e possíveis associações, destacando as vantagens e desvantagens de cada um, acreditamos que você possa analisar quais infusões são mais interessantes, de acordo com cada caso. Agora é com você!


Leia Também

Pra ler depois:

Aguado et al. Reduction of the minimum alveolar concentration of isoflurane in dogs using a constant rate of infusion of lidocaine–ketamine in combination with either morphine or fentanyl. Vet J, 189: 63-66, 2011.
Gutierrez-Blanco et al. Evaluation of the isoflurane‐sparing effects of fentanyl, lidocaine, ketamine, dexmedetomidine, or the combination lidocaine‐ketamine‐dexmedetomidine during ovariohysterectomy in dogs. Vet Anaesth Analg, 40: 599-609, 2013.
– Gutierrez-Blanco et al. Postoperative analgesic effects of either a constant rate infusion of fentanyl, lidocaine, ketamine, dexmedetomidine, or the combination lidocaine‐ketamine‐dexmedetomidine after ovariohysterectomy in dogs. Vet Anaesth Analg, 42: 309-318, 2015.
Hermanns et al. Molecular mechanisms of action of systemic lidocaine in acute and chronic pain: a narrative review. British J Anaesth, 123: 335-349, 2019.
Hofmeister et al. Effects of ketamine, diazepam, and their combination on intraocular pressures in clinically normal dogs. Am J Vet Res, 67: 1136-1139, 2006.
MacDougall et al. Antinociceptive, cardiopulmonary, and sedative effects of five intravenous infusion rates of lidocaine in conscious dogs. Vet Anaesth Analg, 36: 512-522, 2009.
Muir III et al. Effects of morphine, lidocaine, ketamine, and morphine-lidocaine-ketamine drug combination on minimum alveolar concentration in dogs anesthetized with isoflurane. Am J Vet Res, 64: 1155-1160, 2003.
Steagall et al. Evaluation of the isoflurane-sparing effects of lidocaine and fentanyl during surgery in dogs. JAVMA, 229: 522-527, 2006.
Wagner et al. Use of low doses of ketamine administered by constant rate infusion as an adjunct for postoperative analgesia in dogs. JAVMA, 221: 72-75, 2002.
Williamson et al. Isoflurane minimum alveolar concentration sparing effects of fentanyl in the dog. Vet Anaesth Analg, 44: 738-745, 2017.


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