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AINES e doença renal em gatos: Qual a relação?

Escrito por: Jaqueline Pizzaia e Bruna Sarri

Os gatos têm alta predisposição ao desenvolvimento de problemas renais, principalmente por possuírem baixa quantidade de néfrons, apresentarem maior capacidade de concentrar urina e hábito de ingerir pouca água, o que propicia a formação de cálculos urinários e aparecimento de doenças renais.

O termo “doença renal” está associado à lesões no sistema renal de modo geral, sem caracterizar a etiologia, alteração funcional e sua gravidade. Insuficiência renal pode estar presente na doença renal, aguda ou crônica, e surge devido à falha dos rins em relação à metabolismo, excreção, secreção e reabsorção de substâncias, ou seja, qualquer condição que leve à redução da taxa de filtração glomerular (TFG).

Um dos principais fatores de risco para o desenvolvimento da doença renal é a utilização indiscriminada de anti-inflamatórios não esteroides (AINES) pois, apesar de não serem medicamentos nefrotóxicos por si só, eles podem ter potencial nefrotóxico em situações especiais, como quando são utilizados em doses elevadas ou a longo prazo e em pacientes idosos ou com comorbidades que afetem o sistema cardiovascular e/ou renal.

Como os AINES interferem no sistema renal?

Os AINES são os analgésicos mais utilizados na medicina veterinária e seu mecanismo de ação está envolvido com a inibição da enzima ciclo-oxigenase (COX), interferindo na conversão do ácido araquidônico em prostaglandinas, prostaciclina e tromboxanos. As prostaglandinas, além de tantas outras funções, têm ação vasodilatadora. Nos rins atuam aumentando a perfusão renal, reduzindo a resistência vascular renal e promovendo dilatação vascular, sendo de extrema importância para a manutenção da TFG e preservação do fluxo renal. Portanto, quando há inibição desse mecanismo fisiológico, pode ocorrer vasoconstrição renal e isquemia medular, culminando em lesão renal aguda e posteriormente, doença renal aguda e crônica.

Relação entre os anti-inflamatórios não esteroides e o sistema renal.

AINES e Insuficiência Renal Aguda

A insuficiência renal aguda (IRA) é resultado da diminuição repentina e persistente da TFG, acarretando em desequilíbrio hidroeletrolítico e acúmulo de ureia e creatinina. Há diversas causas que podem levar à IRA e a utilização indiscriminada de AINES se encaixa nesse contexto como uma causa pré-renal. Uma pesquisa envolvendo gatos saudáveis e sem lesões renais pré-existentes, avaliou o uso de meloxicam por 5 dias, num tratamento inicial de 0,2 mg/kg, seguido de 5 dias com dose de 0,1 mg/kg.

Os autores perceberam que esse tratamento não afetou a TFG, não resultando em quadros de IRA, concluindo que o meloxicam, em doses ideais, é seguro em pacientes hemodinamicamente estáveis. Este estudo compactua com as diretrizes consensuais fornecidas pela International Society of Feline Medicine (ISFM) e pela American Association of Feline Practitioners (AAFP), as quais afirmam que o risco de desenvolvimento de IRA em gatos é baixo durante o uso terapêutico adequado de AINES autorizados para uso na espécie.


AINES em Doença Renal Crônica

A doença renal crônica (DRC) é o resultado da perda progressiva e irreversível de néfrons, que acarreta em comprometimento das funções renais. A DRC pode ser definida como lesão renal existente há pelo menos três meses, podendo ter ou não diminuição da TFG, ou ainda a redução de mais de 50% da TFG persistentes por pelo menos três meses.

Em gatos, a DRC têm íntima relação com a idade e pode afetar até 40% dos gatos com idade superior a 10 anos e 80% de gatos com mais de 15 anos. Outras comorbidades que geralmente estão presentes nos pacientes geriátricos, como osteoartrite e câncer, e que também demandam o uso de analgésicos, podem acentuar o impacto maléfico da terapia no doente renal.

Apesar dos riscos, um estudo demonstrou que a terapia crônica com meloxicam, nas doses de 0,01 a 0,03 mg/kg SID, é considerada eficaz e segura quando administrada em gatos com osteoartrite por aproximadamente seis meses, não gerando alterações consideráveis em valores de creatinina, o que indica que o fármaco em questão pode ser administrados em animais com DRC estável. Além disso, alguns autores levantam a hipótese de que a melhora da qualidade de vida dos gatos após o controle da dor pode promover aumento de apetite e ingestão de água, o que é interessante para o tratamento do paciente com DRC.

Uma outro estudo demonstrou que a administração de meloxicam a curto prazo não afeta significativamente a TFG em gatos com azotemia crônica (compatível com os estágios 2 e 3 de DRC), sugerindo também que a administração de AINES preferencialmente COX-2 podem retardar a progressão da DRC em felinos.


Afinal, qual a segurança dos AINES em gatos?

Como podemos ver nesse post, os AINES são efetivos no tratamento de dores agudas, como por exemplo aquelas provenientes de procedimentos cirúrgicos, além de serem parte do tratamento de dores ocasionadas por tumores, osteoartrites, cistites, otites, dermatites com inflamação intensa e doenças periodontais. Contudo, os AINES devem ser administrados com cautela nos gatos, pois muitos destes fármacos são metabolizados por glicuronidação, uma via metabólica conhecidamente como deficiente nessa espécie e que pode aumentar o tempo de meia-vida do AINE.

Segundo o consenso e diretrizes da ISFM e a AAFP, os AINES indicados para gatos são o cetoprofeno, ácido tolfenâmico, carprofeno, meloxicam e robenacoxibe. Abaixo destacamos as indicações e possível potencial de lesão, em ordem do mais nefrotóxico para o menos conforme seletividade COX-2 nessa espécie:

  • Cetoprofeno: Atua de maneira indiscriminada na COX-1 e -2. Não é indicado para analgesia preventiva, pois pode levar à falência renal e hepática se ocorrer hipovolemia durante o procedimento e também não é indicado para uso crônico, por interferir muito na produção de prostaglandinas, predispondo ao surgimento de lesões renais;
  • Ácido tolfenâmico: É indicado para o tratamento de doenças respiratórias superiores e como tratamento sintomático da febre, além de analgesia em afecções locomotoras. É um AINE não seletivo para COX-2 e, assim como o cetoprofeno, não é indicado para tratamento crônico;
  • Carprofeno: Pode ser utilizado em dores agudas pós-operatórias e inflamações associadas a distúrbios musculoesqueléticos, sendo recomendado, em gatos, em apenas uma única dose, por via subcutânea. É um fármaco inibidor preferencial COX-2 e, portanto, com baixas ocorrências de nefrotoxicidade quando administrado de maneira correta;
  • Meloxicam: É o AINE mais utilizado em gatos atualmente. Possui maior margem de segurança por apresentar menores efeitos indesejáveis quando comparado com os demais (exceto robenacoxibe), sendo utilizado no controle da dor pós-cirúrgica, musculoesqueléticas e osteoartrites. É um inibidor preferencial COX-2, mas ainda pode inibir COX-1 a depender da dose ou cronicidade no tratamento. Por isso, em usos crônicos deve-se priorizar doses baixas;
  • Robenacoxibe: Muito utilizado em dores musculoesqueléticas agudas, bem como em dores e inflamações provenientes de cirurgias ortopédicas e de tecidos moles. Por ser um coxibe, é seletivo para COX-2 e, assim, de menor potencial nefrotóxico em relação aos demais AINES.


E em pacientes com DRC?

Deve-se ressaltar que nem todos os gatos com DRC podem receber um tratamento crônico com AINE. Para isto a WSAVA recomenda a administração destes fármacos apenas em gatos com DRC estável e desde que tenham as seguintes condições:

  • Mínimas alterações de peso corporal e creatinina urinária por pelo menos dois meses, e condições concomitantes, como hipertensão, controladas;
  • Fácil acesso à água potável, além de fornecimento de alimentação úmida;
  • Uso de doses mínimas efetivas, com base na resposta terapêutica do animal;
  • Seguir as diretrizes gerais para o manejo da DRC, incluindo controle de fosfato;
  • Deixar claro ao tutor os riscos e benefícios da terapia, com objetivo de melhorar a qualidade de vida do animal;
  • Orientar o tutor para possíveis efeitos adversos do tratamento (perda de peso, hiporexia, êmese, poliúria e polidipsia);
  • Monitorar o animal continuamente, por meio de acompanhamento do peso, avaliação cardiovascular e testes laboratoriais;
  • Aplicação de técnicas de enriquecimento ambiental para manejo de dor crônica, além de possíveis terapias complementares, como fisioterapia, acupuntura, nutracêuticos e condroprotetores.

Concluindo…

Os AINES podem ser grandes aliados no tratamento da dor em gatos proporcionando qualidade de vida para os mesmos, mas é necessário sempre optar pelos fármacos indicados para utilização na espécie, evitando os efeitos indesejáveis. Além disso, o ajuste de doses e o tempo de tratamento são fundamentais no tratamento crônico, buscando sempre a dose mínima efetiva para diminuir a possibilidade de ocorrência de danos renais e DRC. Seguindo essas dicas é possível tratar o paciente felino de forma segura e eficiente!


Leia Também

Pra ler depois:

– Goodman LA et al. Effects of meloxicam on plasma iohexol clearance as a marker of glomerular filtration rate in conscious healthy cats. Am J Vet Res, 70:826-830, 2009.
Gowan, RA et al. Retrospective case—control study of the effects of long-term dosing with meloxicam on renal function in aged cats with degenerative joint disease. J Fel Med Surg, 13:752-761, 2011.
– Gunew, MN et al. Long-term safety, efficacy and palatability of oral meloxicam at 0.01–0.03 mg/kg for treatment of osteoarthritic pain in cats. J Fel Med Surg, 10:235-241, 2008.
– Khan SA; Mclean, MK. Toxicology of frequently encountered nonsteroidal anti-inflammatory drugs in dogs and cats. Vet Clin North Am Small Anim Pract, 42:289-306, 2012.
– Lascelles D et al. Nonsteroidal anti-inflammatory drugs in cats: a review. Vet Anaesth Analg. 34,228-250, 2007.
– Monaghan K et al. Feline acute kidney injury: 1. Pathophysiology, etiology and etiology-specific management considerations. J Fel Med Surg, 14:775-784, 2012.
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