Há diferenças na anestesia de cães braquicefálicos?
Escrito por: Marina Batista de Sousa e Adriano Carregaro
Essa dúvida sempre surge quando nos deparamos com cães braquicefálicos que serão anestesiados. Mas, afinal, será que há algum protocolo anestésico especial ou cuidados específicos para esses cães nessas situações?
Cães braquicefálicos são caracterizados por um crânio encurtado rostrocaudalmente, o que resulta em um focinho curto. Essa conformação tem como consequência excesso de tecidos moles no trato respiratório superior, o que geralmente gera dificuldade respiratória, chamada de síndrome das vias aéreas obstrutivas dos braquicefálicos.
Ela é caracterizada por deformidades anatômicas congênitas das vias aéreas superiores, representadas por estenose nasal, prolongamento do palato mole e estreitamento da luz traqueal. São comumente encontradas em cães das raças Shih Tzu, Pug, Buldogues Inglês e Francês, Boxer, Lhasa Apso, Maltês, Cavalier King Charles Spaniel, Pequinês e Boston Terrier.
Essas anormalidades dificultam o fluxo normal de ar através das vias aéreas, causando dificuldade respiratória, inspiração forçada, cianose, tosse, engasgos, dispneia, intolerância ao exercício e até síncope. Além disso, alterações esofágicas e gastrointestinais são frequentemente observadas em cães com problemas respiratórios superiores, sendo o principal deles o refluxo gastroesofágico, o qual acredita-se que esteja relacionado com pressões negativas altas intratorácicas geradas para superar a obstrução da via aérea superior, podendo ocorrer pneumonia por aspiração.
Há algum protocolo anestésico específico para cães braquicefálicos?
A resposta é não. A escolha dos fármacos depende do temperamento do animal, do procedimento cirúrgico a ser realizado, da gravidade do quadro respiratório e da familiaridade do anestesista com os medicamentos disponíveis. Nada de diferente de outro paciente. Porém, credita-se à acepromazina um possível agravamento na obstrução das vias aéreas, por meio do relaxamento da musculatura faríngea e do decúbito. Além disso, cães da raça Boxer são mais sensíveis aos efeitos desse medicamento, podendo ocorrer bradicardia e hipotensão ligada à sincope vasovagal. Assim, recomenda-se a utilização de doses baixas (< 0,03 mg/kg) para pacientes dessa raça.
Caso seja necessária sedação, a depender do temperamento do animal, agonistas alfa-2-adrenérgicos podem ser utilizados, como dexmedetomidina, devendo-se ser usada com cautela para evitar sedação intensa e consequente hipoventilação. A combinação com opioides é bem-vinda pois, até o momento, não há informações de que os opioides agravem o quadro de hipoventilação nesses animais.
A pré-oxigenação com máscara facial, realizada por 3 minutos antes da indução anestésica, aumenta o tempo até a dessaturação de oxigênio, sendo benéfica nos braquicefálicos. Além disso, também é observado que que esses animais têm menores concentrações de oxigênio arterial quando acordados e em repouso, comparados a outras raças. Um estudo mostrou que cães braquicefálicos apresentaram PaO2 significativamente menor (86,2 mmHg) e PaCO2 maior (36,3 mmHg) quando comparados com cães meso ou dolicocefálicos (PaO2 = 100,2 mmHg e PaCO2 = 32,7 mmHg). Por isso a pré-oxigenação antes da anestesia é essencial.
Os medicamentos utilizados na indução e manutenção não diferem em nada dos praticados em outras raças. O importante é sempre realizar intubação orotraqueal rápida e fornecer O2 enriquecido para o paciente durante o procedimento. A monitoração deve ser cuidadosa, como de costume, com especial atenção para hipercapnia e hipoventilação, que são habituais em braquicefálicos e podem ser intensificadas pela anestesia geral.
A ventilação pode ser dificultada não só pelos medicamentos, mas também pelo posicionamento do paciente e obesidade, comum nessas raças. A hipoplasia traqueal e a intubação endotraqueal com um tubo de diâmetro pequeno também podem favorecer hipoventilação no decorrer da anestesia em função do aumento da resistência das vias aéreas e do esforço inspiratório.
Cuidados pós-anestésicos
Um importante momento da anestesia nas raças braquicefálicas é o período pós-anestésico. Em teoria, esses animais tem 4 vezes maior risco de complicações nesse momento, tendo em vista a obstrução respiratória que pode ocorrer após a extubação. Em um recente estudo, a maioria dos Buldogues Ingleses que vieram a óbito, relacionados à anestesia, foram causados por sequelas de complicações respiratórias em até 48 horas de pós-operatório, principalmente causado por obstrução das vias aéreas e regurgitação.
Então, após a extubação, é ideal que os cães braquicefálicos sejam posicionados em decúbito esternal e com o pescoço estendido, facilitando a respiração. É importante que o tubo endotraqueal permaneça por mais tempo no paciente durante a recuperação, ou que se tenha tubo endotraqueal disponível para reintubação de emergência. Deve-se também observar o animal continuamente após a extubação e é altamente recomendado a monitoração da SpO2 ao longo da recuperação. Caso necessário, a suplementação de O2 é essencial. Em casos bem específicos, de suspeita de doença das vias aéreas inferiores, broncodilatadores, como o salbutamol, podem ser benéficos na redução do trabalho respiratório e na melhora do fluxo aéreo e da oxigenação.
Concluindo…
Como visto, não há segredos na anestesia em braquicefálicos e o profissional deve estar preparado para prováveis intercorrências em relação à parte ventilatória. A rápida intubação, correto fornecimento de O2 durante e após o procedimento e adequada monitoração no período perianestésico certamente trará sucesso ao procedimento nesses animais.
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Pra ler depois:
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