Os circuitos anestésicos não reinalatórios são todos iguais!?
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A anestesia inalatória é considerada a modalidade anestésica mais utilizada em Medicina Veterinária. Ainda que não seja o foco deste post, ela tem como vantagens autonomia no tempo anestésico, facilita a mudança de planos e promove recuperação relativamente rápida. Para que isso seja possível, precisamos de equipamentos adequados para a vaporização e fornecimento do anestésico para o paciente. Um post sobre as peças comuns em qualquer aparelho de anestesia inalatória, independente do paciente, pode ser vista nesse link, ok?
A anestesia inalatória só é adequadamente empregada quando é capaz de (a) fornecer anestésico para o paciente, (b) fornecer O2 em concentrações adequadas e (c) não permitir reinalação de CO2. Para que isso seja possível, geralmente utilizamos circuitos anestésicos reinalatórios (circuito circular valvular), os quais evitam a reinalação de CO2 por meio da cal sodada e válvulas unidirecionais. Essa é, sem dúvida, a melhor opção de circuito anestésico mas não é aplicável para todos os animais. Isso porque o paciente precisa exercer pressão expiratória suficiente para vencer a resistência mecânica das válvulas unidirecionais e da cal sodada. Por convenção, esse sistema é seguro para pacientes acima de 5-7kg.
Então, como podemos fazer anestesia inalatória em pacientes muito leves, como os cães de raças miniaturas, a maioria dos gatos, aves e répteis? Nesse caso utilizamos os circuitos não reinalatórios, que em geral são leves e têm pouca resistência mecânica.
Mapleson A, B, C….
Os primeiros circuitos não reinalatórios surgiram no início do século XX. Entre as décadas de 1920 e 1980 surgiram mais de uma dezena de circuitos, com diversos formatos, todos com a tentativa de “entregar o melhor custo-benefício”. Porém, na essência, todos seguem a ideia de fornecer anestésico e O2 e evitar reinalação de CO2. Aí vem a pergunta… Mas é tudo igual ou não?
Essa pergunta já foi feita lá nos anos de 1950, por William Mapleson. Ainda que muitos acreditem que o Dr. Mapleson fosse um especialista em equipamentos anestésicos, tudo isso aconteceu por acaso. O foco de suas pesquisas eram os bloqueadores neuromusculares, mas ele foi estimulado por um colega, Dr. William Mushin, a avaliar os conceitos físicos envolvidos nos diversos circuitos não reinalatórios. Anos depois ele publicou um artigo sem pretensão, em que separou os circuitos não reinalatórios em letras (A a E) (Figura 1). De despretensiosa pesquisa, o Dr. Mapleson ficou conhecido mundialmente, e dizia que ficou famoso apenas “porque conhecia as letras do alfabeto”.
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Organizando os circuitos não reinalatórios
Há diversas possibilidades para organizarmos os mais diferentes circuitos não reinalatórios. As características gerais já foram abordadas na videoaula de Circuitos Anestésicos, da webserie “Anestesia é o Básico”. Aqui, vamos caracterizar os mais interessantes e os mais utilizados na Medicina Veterinária, agrupando-os por “afinidade estrutural”, sem nenhuma pretensão de fixar isso. Evitei separar os circuitos sob a ótica de Mapleson, pois confesso que me confundo um pouco com a nomenclatura de letras…
Circuitos de Magill, Lack e Bain
O Circuito de Magill (Ivan Magill, 1928) é composto por um tubo corrugado, com a entrada para o fluxo gás fresco (FGF) na porção distal, próxima ao balão reservatório e com a válvula de escape próxima ao paciente (Figura 2). Podemos perceber que a remoção do CO2 expirado é feita pelo fluxo contrário, forçando o gás expirado a sair pela válvula de escape, próxima ao paciente. Para que ele seja funcional o FGF deve ser no mínimo 1 x VM e o volume do tubo corrugado deve ser maior que o VT.
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A grande vantagem desse circuito é o de remover todo o gás expirado com facilidade, não permitindo que o CO2 permaneça no tubo e/ou balão reservatório. Porém, na ventilação mecânica ocorre o contrário, ou seja, acúmulo de CO2. As desvantagens desse sistema são o de apresentar certa resistência mecânica no momento expiratório, pois o FGF vem em sentido contrário ao expirado pelo paciente e a posição da válvula de escape, próxima ao paciente.
O Circuito de Lack (L.A. Lack, 1976) é basicamente o mesmo que o de Magill, mas com um design que facilita a remoção dos gases expirados. O FGF continua vindo da porção distal, mas o gás expirado é carreado por um tudo interno, menor, que leva o gás até a válvula de escape, localizada longe do paciente (Figura 3). Basicamente temos as mesmas vantagens e desvantagens do circuito de Magill.
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O Circuito de Bain (Bain & Spoerel, 1972) tem um propósito diferente dos anteriores. Ao contrário do Lack, o FGF é carreado até o paciente por um tubo interno e o gás expirado, por um externo (Figura 4). Isso permite que o gás inspirado seja umidificado e aquecido pelo gás expirado.
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A ideia é excelente mas, na prática um pouco contestada, principalmente porque o tubo interno é considerado muito estreito para fornecer todo o FGF necessário, fazendo com que parte do gás expirado seja reinalado em pacientes um pouco maiores. Para que isso seja resolvido, o FGF deve ser no mínimo 2 x VM, o que aumenta muito o gasto de gás fresco e anestésico. Isso faz com que haja maior resistência mecânica no momento da inspiração e talvez a umidificação e aquecimento do gás inspirado não seja efetiva.
Circuitos T de Ayre e Jackson Rees
Esses circuitos têm uma característica interessante pois não promovem resistência mecânica na expiração, ou seja, o FGF não é fornecido em sentido contrário ao expirado.
O Circuito T de Ayre (Thomas Ayre, 1937) é extremamente simples. Ele é formado apenas por um tubo curto e uma peça em T, a qual fornece FGF próximo ao paciente, mas em um direcionamento lateral, o que faz com que ele praticamente não tenha resistência mecânica, sendo interessante para animais muito pequenos (até 2 kg) (Figura 5).
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Detalhe que esse circuito não tem balão reservatório. Animais maiores podem inspirar ar ambiente, vindo da extremidade do circuito, diluindo o anestésico e O2. Para que isso não aconteça o FGF deve ser de no mínimo 3 x VM do paciente. Ressalta-se que é ele não é muito eficiente para fazer ventilação artificial.
Uma evolução simples do T de Ayre é o Circuito Jackson Rees (Gordon Jackson Rees, 1950), que tem um balão reservatório na extremidade (Figura 6). Inicialmente a válvula de escape era a própria extremidade do balão, mas os modelos mais atuais contém a válvula entre o tubo corrugado e o balão reservatório. Esse formato fez com que houvesse diminuição de “contaminação” com ar ambiente e facilitou manobras de ventilação. O FGF também deve ser alto para limpar o circuito do CO2 expirado.
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Circuito de Baraka
Anis Baraka (1969) incluiu uma outra peça em T no circuito Jackson Rees (Figura 7). Aqui no Brasil é mais conhecido como circuito de Baraka, mas em outros países é chamado de Duplo T de Ayre ou Jackson Rees II. Ele é um híbrido pois pode se comportar como o circuito de Magill, quando o FGF for fornecido na peça em T distal (Figura 7a), ou Jackson Rees, quando o FGF vem da peça em T proximal (Figura 7b). Em ambos os casos, a saída da outra peça em T funciona como escape. No caso, ele terá as qualidades e desvantagens já destacadas para os circuitos similares, de acordo com o local de FGF.
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Circuito em F (Mera circuit)
O circuito F (Atsuo Fukunaga, 1978) foi confeccionado para ser um híbrido, sendo utilizado como circuito não reinalatório ou reinalatório, de acordo com a configuração desejada. Ele é basicamente um circuito de Bain, mas com um tubo sanfonado na porção distal, capaz de ser utilizado como mangueira de escape de gases expirados ou conectado à válvula expiratória do aparelho de anestesia, sendo o gás expirado filtrado pela cal sodada (Figura 8).
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Além da vantagem de ser um híbrido, ele tem as características de ser mais leve que o circuito circular valvular, pois é um sistema coaxial. Como desvantagem, comparado ao circuito circular valvular, é a necessidade de alto fluxo para que não haja mistura de gases na saída para o paciente.
Mas, e aí?
Todas essas informações podem nos deixar confusos na hora de escolher qual circuito utilizar. Na medicina é um pouco mais fácil entender o processo pois a diferença de peso, e consequentemente força respiratória, não é tão abrangente quando comparado com os pacientes veterinários.
Basicamente precisamos evitar reinalação de CO2. Assim, devemos nos atentar ao tamanho do tubo do circuito, priorizando os maiores que o VT do paciente, e com a entrada de FGF. Em ventilação espontânea os circuitos com entrada longe do paciente (Magill e Lack) são melhores pois são mais efetivos para remover o CO2 expirado. Já em ventilação controlada, os com a entrada próxima ao paciente (Jackson Rees e variantes) entregam FGF de melhor qualidade e evitam a reinalação de gás expirado.
Outros dois pontos importantes para evitar a reinalação são: (a) evitar taquipneia, pois a pausa respiratória é fundamental para a remoção do gás expirado, e a correta monitoração do CO2, por meio de capnógrafo. De resto, é com você!
Leia Também
- Circuitos Anestésicos – Anestesia é o Básico #15
- Anestesia Inalatória – Anestesia é o Básico #16
- TIVA – Anestesia Total Intravenosa – Anestesia é o Básico #14
Pra ler depois:
Bain JA, Spoerel WE. A Streamlined anaesthetic system. Can Anaesth Soc J. 19: 426-435, 1972.
Baraka A et al. Rebreathing in a double T-piece system. Brit J Anaesth. 41:47-53, 1969.
Clutton E. The right anaesthetic breathing system for you? In Practice. 17:229-231, 1995.
Fukunaga A. The F breathing circuit, a universal single-limb breathing circuit. J Anesth. 33:317-320, 2019.
Mapleson WW. The elimination of rebreathing in various semi-closed anaesthetic systems. Brit J Anaesth. 26:323-332, 1954.
McIntyre JWR. Anaesthesia breathing circuits. Can Anaesth Soc. 33:98-105, 1986.
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