PostsGeneral

“Opioid-free anaesthesia” – Os dois lados da moeda

Atualmente, o termo “Opioid-free anaesthesia” (anestesia sem opioides) tem sido bastante discutido na anestesiologia humana e de certo ponto, começa a ser explorado na medicina veterinária. Mas, na verdade, qual seria o objetivo, ou quais as implicações de usar ou não opioide no protocolo anestésico/analgésico? Decidimos aqui explorar os prós e contras do uso dos opioides na anestesia veterinária.

Dependência química

Antes de enumerarmos cada ponto, é importante separarmos o que é aplicável na medicina veterinária, quando utilizamos dados e ideias da medicina. Um ponto muito importante que pende a favor da ideia “Opioid-free” é a dependência química. Nos EUA a dependência química em psicotrópicos de ex-pacientes só aumenta, sendo considerado caso de saúde pública. Isso não é diferente em outros países. Acredita-se que haja um gatilho do tratamento analgésico nesses pacientes. Obviamente isso não acontece nos pacientes veterinários, uma vez que não há como “conseguir o medicamento” por livre vontade. Ainda que seja possível um paciente veterinário apresentar excitação após receber infusão contínua de algum opioide, esse efeito não se perdurará após algum tempo.

Outro ponto importante é a facilidade na obtenção de receituários para facilitar a compra. Nesse caso, se pensarmos nos pacientes veterinários, o problema reflete nos tutores, os quais poderiam utilizar os medicamentos destinados aos animais, para si. Isso é um problema que o médico veterinário deve se atentar pois, mesmo que não seja responsável direto na dependência química desse cidadão, pode ser parte facilitadora do processo.

Hiperalgesia e Tolerância induzida por opioides

O uso de doses elevadas de opioides, principalmente por períodos prolongados e em estímulos de baixa intensidade, podem fazer com que o paciente necessite de doses cada vez maiores para um determinado efeito (tolerância) ou até mesmo desenvolva hiperalgesia. Na medicina humana diversos estudos abordam este tema e apontam para o uso racional de opioides. Na medicina veterinária há estudos que demonstram que as doses e frequência de administração devem ser ajustadas a cada paciente. Assim, utilizar opioides quando necessário e de acordo com a resposta do paciente não ocasionará estes efeitos; já o uso de doses fixas e padrão para diferentes estímulos e pacientes pode aumentar o consumo de opioides principalmente no pós-operatório.

Refluxo gastrointestinal e Redução da motilidade

Os opioides retardam o esvaziamento gástrico e promovem redução da motilidade intestinal o que, em tese, aumenta as chances de refluxo gastroesofágico, podendo levar à pneumonia ou esofagite e também distúrbios de motilidade intestinal, como cólica e constipação, especialmente em herbívoros. Contudo, em relação ao refluxo, o jejum pré-operatório reduz essa possibilidade. Quanto aos distúrbios de motilidade, esses podem ser reduzidos adequando-se as doses à espécie e às necessidades do paciente e sempre lembrando que há vários outros fatores que também podem desencadear hipomotilidade, como jejum prolongado, estresse e a própria dor por exemplo.

Imunossupressão e Oncologia

Estudos em humanos e em animais já demonstraram efeito imunossupressor dos opioides, o que poderia ser contraindicado em cirurgias oncológicas e em pacientes imunossuprimidos. Alguns estudos demonstraram que o tratamento crônico com morfina foi relacionado ao aumento de metástase e redução significativa de citocitas em ratos. Por outro lado, em ratos com tumor de cólon a morfina foi capaz de reduzir a carga tumoral após tratamento seriado. Recentemente verificou-se que o tratamento com morfina ou metadona não influenciaram o desenvolvimento de tumor abdominal em camundongos.

Até o momento, o que temos são resultados conflitantes, a depender da espécie e tipo de tumor estudado. Nesse quesito devemos ser conservadores em tentar extrapolar condições de uma espécie para a outra ou mesmo um estudo, de um determinado tipo de tumor, para uma situação clínica totalmente diferente.

Mas afinal, é possível realizar uma cirurgia sem opioides?

A resposta é DEPENDE. Alguns pontos são determinantes para o uso ou não dos opioides. Para procedimentos de dor leve a moderada, nos quais os AINES comprovadamente são suficientes para promoverem alívio da dor trans e pós-opertória, é até interessante evitarmos o uso de opioides. Em dores um pouco mais intensas, como em laparotomias, outras técnicas analgésicas devem fazer parte do protocolo, como  o uso de agonistas alfa2 adrenérgicos, adjuvantes (infusões de cetamina, lidocaína ou mesmo alfa2) e bloqueios locorregionais. A combinação de várias técnicas analgésicas certamente suprirá a falta de um analgésico potente, como os opioides. Todavia, caso não se consiga analgesia adequada, como por exemplo em um bloqueio locorregional incompleto, certamente o requerimento de anestésicos gerais será maior e, ainda que bloqueiem a resposta à dor, isso fará com que aumente a insegurança do procedimento anestésico.

Em cirurgias que envolvem dor excruciante, como toracotomias e ortopedia de alta complexidade, ainda que seja possível a anestesia “opioide-free”, devemos pensar na analgesia pós-operatória, a qual deverá ser baseada em analgésicos potentes e, nesse caso, os opioides passam a ser prioridade no tratamento. Mas, mesmo assim, associados aos AINES, anestésicos locais e adjuvantes.

Como conclusão, é nítido que a medicina veterinária evoluiu muito com os anos e está em constante evolução. No passado, os procedimentos anestésicos eram basicamente realizados apenas com anestésicos gerais, os quais promoviam maior depressão fisiológica. Naqueles casos, o uso de opioides em doses altas era até interessante, não só para analgesia, mas também para reduzir o consumo de anestésicos. Contudo, com novos fármacos anestésicos, adjuvantes analgésicos e principalmente a evolução da anestesia locorregional é imperativo que se faça o uso racional de opioides.  Porém, isso não torna impeditivo o uso destes fármacos, desde que sejam ajustadas as doses e frequências de forma individual.

Esse post está relacionado à videoaula Opioides, da webserie “Anestesia é o Básico”. Assistiu? Então vai lá e veja o vídeo!


Read also about:

Para ler depois:
Aguado et al. Effects of naloxone on opioid-induced hyperalgesia and tolerance to remifentanil under sevoflurane anesthesia in rats. Anesthesiol. 118: 1160-1169, 2013.
Bini et al. A retrospective comparison of two analgesic strategies after uncomplicated tibial plateau levelling osteotomy in dogs. Vet Anaesth Analg. 45:557-565, 2018.
Costa et al. Postoperative regurgitation and respiratory complications in brachycephalic dogs undergoing airway surgery before and after implementation of a standardized perianesthetic protocol. JAVMA, 256:899-905, 2020.
Drobatz et al. Does opioid use in pets create higher risk for abuse in humans, Penn Medicine News, 2019.
Egan TD. Are opioids indispensable for general anaesthesia? Br J Anaesth. 122:E127-E135, 2019.
FDA. The opioid epidemic: What veterinarians need to know, 2018.
Harimaya et al. Potential ability of morphine to inhibit the adhesion, invasion and metastasis of metastatic colon 26-L5 carcinoma cells. Cancer Letters, 187:121–127, 2002.
Pascal et al. Opioid-sparing effect of a medetomidine constant rate infusion during thoraco-lumbar hemilaminectomy in dogs administered a ketamine infusion. Vet Anaesth Analg, 47:61-69, 2020.
Romano et al. Stress-related biomarkers in dogs administered regional anaesthesia or fentanyl for analgesia during stifle surgery. Vet Anaesth Analg, 43:44–54, 2016.
Ruíz-López et al. Determination of acute tolerance and hyperalgesia to remifentanil constant rate infusion in dogs undergoing sevoflurane anaesthesia, Vet Anaesth Analg, 47:183-190, 2020.
Rusch E. Effects of morphine and methadone on the behaviour and tumour growth of mice with Ehrlich tumor. 2020. M.Sc. Dissertation – Universidade de São Paulo – USP, Brazil.
Sacerdote et al. The effects of tramadol and morphine on immune responses and pain after surgery in cancer patients. Anesth Analg, 90:1411–1414, 2000.
Simon BT, Steagall PV. The present and future of opioid analgesics in small animal practice. J Vet Pharmacol Therap. 40:315–326, 2017.
White et al. Opioid-free anaesthesia in three dogs. Open Vet J, 7:104-110, 2017.
Wilson et al. Effects of preanesthetic administration of morphine on gastroesophageal reflux and regurgitation during anesthesia in dogs. Am J Vet Res, 66:386–390, 2005.


Suggestions? Thoughts? Comments? Share!

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Alguns números

271292
Views Today : 161
Monthly views : 14463
Yearly views : 143397
en_US