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Analgesia dos canabinoides na dor crônica – Parte 2

Vamos lá, seguindo a ideia do post anterior sobre as evidências dos canabinoides na dor. No primeiro post falamos sobre o mecanismo de ação dos canabinoides e o que se tem de concreto (cientificamente) sobre a ação dos canabinoides na dor aguda. Levantei os poucos artigos científicos que fizeram “Systematic Literature Reviews” (SLR – Revisões Sistemáticas) e verifiquei que não há dados que sustentem o uso de THC, CBD ou de qualquer outro canabinoide na dor aguda. Se você não leu o post anterior, sugiro acessar e ler antes desse ok? Neste post vamos abordar o uso dos canabinoides na dor crônica.

Canabinoides na dor crônica – Levantamento de dados

Seguindo a ideia feita para a dor aguda, resolvi procurar SLR referentes à dor crônica. Na base de dados do Pubmed foram selecionadas as SLR que continuam as palavras-chave “chronic pain” e “cannabinoid”. Para minha surpresa, consegui uma lista bem maior que a de dor aguda; 31 artigos!

Resolvi então selecionar apenas os publicados nos últimos 5 anos (2016-2020). Caiu para 22. Após ler todos os resumos, removi mais 14 artigos pois (a) não eram especificamente sobre canabinoides vs dor crônica, (b) não eram especificamente sobre dor crônica, (c) não eram estudos controlados e randomizados ou (d) não eram escritos em inglês.

Com uma lista final de 8 artigos (ver no final do post) publicados em revistas conceituadas, comecei a ler. Notei que 4 desses artigos continham informações redundantes e, então, foram removidos. Ao final, obtive 4 SLR que considerei bem interessantes, com descrições bastante didáticas de todas as informações pertinentes para que eu pudesse entender melhor a ação dos canabinoides na dor crônica. Vamos lá ver o que eles verificaram.


Analgesic effects of cannabinoids for chronic non-cancer pain (Wong et al., 2020)

Essa é, em teoria, a SLR mais recente (contando a data de publicação deste post). Num total de 1531 estudos, os autores entenderam que apenas 38 passaram pelos critérios estabelecidos. Desses, 33 compararam os canabinoides com placebo e 5 com tratamentos tradicionais (AINES, antidepressivos e anticonvulsivantes).

Os efeitos dos canabinoides foram estudados em pacientes com dor crônica decorrente de esclerose múltipla (a grande maioria – 14), avulsão de plexo braquial, neuropatia decorrente de HIV, de lesão espinhal, diabetes, pós-cirurgia, induzida por quimioterapia dentre outros. Como o próprio título diz, não foram estudados casos de dor crônica decorrente de câncer.

Os autores verificaram que, no geral, os pacientes que receberam algum canabinoide tiveram pequena melhora, quando comparados ao placebo e mesmo aos tratamentos convencionais. Eles subdividiram então os artigos em grupos, com foco em esclerose múltipla, dores neuropáticas exceto esclerose e não neuropáticas. Mesmo nessas extratificações, verificaram que o tratamento com canabinoides produziu algum efeito analgésico.

Porém, a redução no escore de dor geral (de 0 a 10) foi de 0.70 (7%), considerado muito pouco clinicamente, ainda que tenha sido diferente do placebo. De acordo com a metodologia empregada, os autores sugerem que uma redução clinicamente aceitável seria de no mínimo 20%. Nesse caso, consideraram o resultado, de forma global, como de limitada significância.

Os autores verificaram ainda elevada incidência de efeitos indesejáveis, de leves a moderados e bem tolerados, como boca seca, cansaço, sonolência, tontura, náusea, diarreia, constipação e eurofia. Nenhum dos estudos relatou desenvolvimento de dependência ao medicamento ou à própria maconha em si.


Meta-análise do efeito analgésico de canabinoides versus placebo em pacientes com dor crônica. Fonte: Wong et al., 2020

Cannabinoids in chronic non-cancer pain (Johal et al., 2020)

Nessa SLR os autores selecionaram 36 estudos de um total de 1664. Eles focaram não apenas na diminuição da dor comparado ao placebo, mas também na eficácia do tratamento ao longo do tempo. De forma geral, o tratamento a base de canabinoides foi melhor que o placebo. Entretanto, aparentemente foi perdendo a efetividade, pois a diferença em relação ao controle foi diminuindo ao longo de 6 meses.

Ao estratificarem as doenças, os autores verificaram algum alívio da dor com uso de canabinoides em pacientes com esclerose múltipla, pois os espasmos musculares diminuíram bastante. Também houve pequena melhora em outras condições de neuropatias, como lesão pós-traumática, fibromialgia, hiperalgesia e diabetes. Não foram observadas melhoras em pacientes com artrite reumatoide ou osteoartrite.

Os efeitos indesejáveis foram os mesmos observados no estudo anterior, somando-se alucinações, tonturas, distúrbios de equilíbrio e espasticidade refratária. Os autores compararam os resultados, de forma global, a uma outra SLR que tinha foco em opioides e verificaram que esse grupo foi mais efetivo que os canabinoides, ao longo do tempo. O grande problema no uso dos opioides é a dependência química desencadeada e a complexa liberação de medicamentos para tratamentos a longo prazo.


Cannabis and cannabinoids for the treatment of people with chronic non-cancer pain conditions (Stockings et al., 2018)

A abordagem desta SLR focou na diminuição do escore de dor em no mínimo 30%, de pacientes que sofriam de dor crônica, considerado pelos autores como clinicamente aceitável. Os autores triaram 47 estudos realizados de forma controlada e randomizada, de um total de 2525. Os resultados foram, de forma geral, bem próximos entre os grupos tratados com canabinoides ou placebo. Em apenas 29% dos artigos verificou-se redução de 30% no escore de dor nos grupos tratados com canabinoides, sendo que esse índice foi de 25,9% quando tratados com placebo. Já a redução de 50% nos escores de dor foi verificada em apenas 18,2% dos grupos tratados com canabinoides e 14,4% dos grupos placebo.

Em suma, os autores verificaram que os canabinoides podem trazer alguma melhora apenas em pacientes com esclerose múltipla, principalmente porque diminuem os espasmos musculares característicos dessa doença, e que os canabinoides não devem ser considerados como única terapia em pacientes com dor crônica.


Efficacy, tolerability and safety of cannabis-based medicines for chronic pain management (Häuser et al., 2017)

Essa SLR é uma revisão de todas as SLR até então publicadas naquela data. De um total de 748 achados, somente 10 passaram pelos critérios de exclusão. Nesse caso, os autores separaram os estudos em tipos de dor crônica: origem neuropática, oncológica, reumáticas e esclerose múltipla. De cara os autores verificaram que não há evidências que sustentem o tratamento com canabinoides em pacientes oncológicos, com doenças reumáticas ou fibromialgia. Especialmente em pacientes oncológicos, todos os artigos consultados na minha revisão foram categóricos em atestar a ineficácia deste grupo no alívio da dor.

De acordo com a abordagem de Häuser et al., e de forma semelhante aos outros, há alguma melhora em pacientes com esclerose múltipla, pois os canabinoides mostram alguma evidência na diminuição da espasticidade. Mesmo sim, os autores entenderam que a validade do uso de canabinoides no tratamento da espasticidade em pacientes com esclerose múltipla não é tão consistente. Eles também alertam que os médicos de pacientes que convivem com dor crônica devem conscientizá-los sobre a limitação do uso de canabinoides nesses casos.


Final Round

Esses dois posts foram decorrentes da curiosidade de ter uma opinião formada, cientificamente, sobre o uso de canabinoides na dor, não tomando partido de liberação ou não de maconha, de opiniões “soltas ao vento” ou de qualquer outra coisa. Confesso que gastei um tempo razoável nesse processo mas foi divertido e gratificante pois agora tenho embasamento para determinar, até que tenhamos informações novas, sobre esse assunto.

Diante de tudo isso, não tenho dúvidas de que a eficácia dos canabinoides, tanto na dor aguda quanto crônica, são inconsistentes. Ainda que tenhamos um ou outro estudo que tenha comprovado tal efeito, os artigos citados nesse e no outro post foram decorrentes de estudos de centenas de artigos sobre o tema, eliminando qualquer tendência. Mas também ficou claro pra mim que talvez haja algum potencial futuro na terapia envolvendo o sistema endocanabinoide. Talvez doses, vias e a escolha do melhor composto seja a chave do negócio.

Especial atenção deve ser dada aos pacientes com esclerose múltipla, situação em que há interessante melhora por diminuição das espasticidades. Nesses casos acredito que seja válido sim. Também não posso formar opinião sobre outras situações, como atuação dos canabinoides em processos imunológicos, de reprodução dentre outros. Não foi o foco destes posts, ok?

E você? Chegou a alguma conclusão? Lembre-se que a discordância é importante para a evolução dos pensamentos…


Leia Também

Pra ler depois:
– Aviram J; Samuelly-Leichtag G. Efficacy of cannabis-based medicines for pain management: a systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. Pain Physician. 20:E755-E796, 2017.
– Fitzcharles et al. Efficacy, tolerability and safety of cannabinoids in chronic pain associated with rheumatic diseases (fibromyalgia syndrome, back pain, osteoarthritis, rheumatoid arthritis): A systematic review of randomized controlled trials. Schmerz. 30:47-61, 2016.
– Häuser et al. Efficacy, tolerability and safety of cannabis-based medicines for chronic pain management – An overview of systematic reviews. Eur J Pain. 22:455-470, 2018.
– Johal et al. Cannabinoids in chronic non-cancer pain: a systematic review and meta-analysis. Clin Med Insights Arthritis Musculoskelet Disord. 13:1179544120906461, 2020.
– Meng et al. Selective cannabinoids for chronic neuropathic pain: a systematic review and meta-analysis. Anesth Analg. 125:1638-1652, 2017.
– Mücke et al. Cannabis-based medicines for chronic neuropathic pain in adults. Cochrane Database Syst Rev. 3:CD012182, 2018.
– Stockings et al. Cannabis and cannabinoids for the treatment of people with chronic noncancer pain conditions: a systematic review and meta-analysis of controlled and observational studies. Pain. 159:1932-1954, 2018.
– Wong et al. Analgesic effects of cannabinoids for chronic non-cancer pain: a systematic review and meta-analysis with meta-regression. J Neuroimmune Pharmacol. ahead of print, 2020.

Sugestões? Considerações? Pensamentos? Comente!


One thought on “Analgesia dos canabinoides na dor crônica – Parte 2

  • Claudete Bernardo Henriques

    Boa noite!!
    Obrigada pela publicação da matéria, cheguei à sua publicação lendo a respeito e procurando encontrar sobre tratamento de dor de meu filhote de pastor belga co displasia e que foi indicado injeção de librela.
    Ao ler seu estudo sobre o uso do CBD e THC e associando ao tratamento de fibromialgia que faço desde 2015 foi muito esclarecedor e devo ler os artigos por ti disponibilizado.
    Meu reumatologista sempre não foi a favor do uso dos carboniodicos por não ter evidências de que para a fibromialgia realmente teríamos ganhos significativos em relação aos tratamentos convencionais.
    Sempre fico na dúvida de procurar outro médico e descobrir se essa não seria uma nova saída mas diante de seu levantamento vou avaliar melhor e será um ponto de partida.
    Obrigada

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